Uma reflexão sobre a educação indígena
A educação escolar deve ser um instrumento de afirmação da cultura indígena e também de preparação dos índios para se relacionarem com a sociedade de fora conforme o interesse de cada povo (...) (Professor Walmir Kaingang, RCNEI)
RESUMO:
O presente artigo pretende expor reflexões sobre a educação
indígena e sobre minha experiência pessoal como
professora de Geografia, no Curso de Formação de
Professores Indígenas do Médio rio Madeira, ao sul do
Amazonas, Brasil.
Creio
que é importante compartilhá-las com outras pessoas no
intuito de ampliar a compreensão e a tolerância com as
diferenças culturais.
Refletir
sobre educação indígena é muito
importante no momento histórico em que vivenciamos a década
dos povos indígenas. Conforme Meliá (1979), a educação
indígena está mais perto da noção de
educação, enquanto processo total. A convivência
e a pesquisa mostram que para o índio a educação
é um processo global. A cultura indígena é
ensinada e aprendida em termos de socialização
integrante. (...) Os educadores do índio tem rosto e voz; têm
dias e momentos; tem materiais e instrumentos; têm toda uma
série de recursos bem definidos para educar a quem vai ser um
indivíduo de uma comunidade com sua personalidade própria
e não elemento de uma multidão.
Isto
quer dizer que cada sociedade indígena dispõe de seu
próprio processo de educação e de transmissão
dos seus conhecimentos tradicionais, não necessitando da
interferência de terceiros, exceto nos casos em que esses
processos tenham sido destruídos e requeiram registros
externos para ser, em alguma medida, reconstruídos.
A
necessidade de educação escolar, admitida e
reivindicada pelos povos indígenas, provém do sistema
multiétnico (Barros, 2000). Entretanto, seu sentido se altera
de acordo com as outras variáveis oriundas das diversidades
sócio-culturais, decorrentes do aprofundamento das relações
de contato, como falar e escrever em português ou fazer
operações matemáticas, que demandam serviços
de educação escolar quando solicitados por comunidades
indígenas interessadas. Esse interesse é
imprescindível, pois não faz sentido impor a outra
cultura informações estranhas que ela não
necessita.
Portanto,
a educação tem que fazer a ponte entre a sociedade
indígena e a não indígena, para que os índios
tenham acesso às informações e tecnologias
modernas e tenham assegurado a liberdade de escolher o que eles
querem adotar e o que não querem.
Segundo
Ferreira (2001), a história da educação escolar
entre os povos indígenas no Brasil pode ser dividida em quatro
fases. A primeira, mais extensa, inicia no Brasil Colônia,
quando a escolarização dos índios esteve nas
mãos de missionários católicos, especialmente
jesuítas. O segundo momento é marcado pela criação
do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), em
1910, e se estende à política de ensino da FUNAI
(Fundação Nacional do Índio), e a articulação
com o SIL (Summer Institute of Linguistics) e outras missões
religiosas. A terceira fase vai do fim dos anos 60 aos anos 70,
destacando-se nela o surgimento de organizações não
governamentais: Conselho Indigenista Missionário (CIMI),
Operação Amazônia Nativa (OPAN), Centro de
Trabalho Indigenista (CTI), Comissão Pró-Índio,
entre outras, e do movimento indígena. A quarta fase se
delineia pela iniciativa dos próprios povos indígenas,
nos anos 80, que passam a reivindicar a definição e a
autogestão dos processos de educação formal. Os
índios entram em cena para debater a política de
escolarização e para exigir o direito a uma educação
escolar voltada aos seus interesses, ou seja, uma educação
que respeite as diferenças e as especificidades de cada povo.
A
educação escolar passou a ser encarada como uma
política pública, como um direito à cidadania,
além de um instrumento de resistência e luta. Hoje, já
não se discute se os índios têm ou não têm
alma, mas trata-se de admiti-los como cidadãos com direitos
específicos e diferenciados. Nas palavras de Secchi (2000),
"admitiu-se a alteridade e tolerou-se a diferença,
mantendo-se, entretanto, inalterado, o direito discricionário
de outorgar direitos".
No
Brasil dos últimos anos, algumas mudanças se fizeram
sentir, a partir da Constituição de 1988, com o
reconhecimento do direito dos povos indígenas à
diferença sócio-cultural e à valorização
de suas línguas, modos e concepções. No plano
pedagógico, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, os documentos normativos editados pelo Ministério de
Educação (MEC) e as pautas de reivindicações
de professores e organizações indígenas foram
inovações legais importantes no processo de
autodeterminação desses povos. Entre esses dispositivos
está a Resolução n. 3, de 1999, que estabelece a
criação de escolas autônomas, tendo regimento,
currículo e pedagogia próprios, definidos de acordo com
as particularidades de cada situação local e os cursos
específicos de professores.
Estes
dispositivos mostram que estão lançadas as bases para a
edificação de uma escola diferenciada, "com um
papel importante na construção de diálogos
interculturais e projetos políticos de autogestão
econômica, tecnológica, cultural e lingüística
por grupos indígenas específicos" (Da Silva, 2001,
p. 101).
A
partir de 1995 (ano em que se inicia a Década dos Povos
Indígenas) reivindicações por regularização
de escolas e a formação de professores indígenas
para o magistério começam a pipocar por todo o País.
Tais cursos têm algumas características: a) são
concebidos e dirigidos a professores indígenas que atuam ou
venham a atuar nas escolas das aldeias; b) ancoram-se no fazer
pedagógico dos cursistas e dos demais atores envolvidos no
processo de formação e têm como referencial a
realidade sócio-educacional de cada comunidade específica
e; c) baseiam-se na multiplicidade étnica e cultural dos
cursistas (Projeto Indata? hua, 1999).
A
escolha dos conteúdos e a forma de organização
curricular expressam um acordo intercultural. É a partir dele
que definem os conhecimentos de caráter geral e específico
de cada núcleo de estudo e as estratégias mais
adequadas de aprendizagem.
O
Projeto de formação de professores indígenas no
ensino médio Indata?hua, foi elaborado em 1999 pela equipe de
indigenistas da OPAN, que se encontravam, à época, na
cidade de Humaitá (AM). O projeto resultou de uma demanda dos
índios que queriam ver reconhecidas e avaliadas as ações
já desenvolvidas, bem como dar continuidade à formação
e a titulação dos mesmos.
O
Projeto foi posto em prática em 1995 pela OPAN com parceria de
órgãos municipais e federais - Secretaria Estadual de
Educação (SEDUC/AM), Secretaria Municipal de Educação
de Humaitá (SEMED) e FUNAI ADR/Porto Velho -, inicialmente
junto ao povo Parintintin, estendendo-se, hoje, aos povos Tenharim,
Torá e Jiahoi da região do médio rio Madeira.
Em
junho de 2001 participei ativamente do Projeto como professora do
módulo de Geografia. Foi uma experiência inigualável,
pois em momento algum de minha vida profissional me dedicara às
questões de cunho pedagógico. É muito incipiente
minha relação com a educação e, mais
ainda, com a educação escolar indígena. A seguir
destaco alguns pontos da experiência realizada neste período,
na aldeia Tenharim Kãpinhu?hu.
O
primeiro contato com os povos do tronco lingüístico
Kagwahiva ocorreu ainda durante o curso de formação
indigenista, oferecido pela OPAN, entre abril e junho do ano 2000,
quando tive a oportunidade de ler alguns textos e apresentar
seminários a respeito da organização social
destes povos.
A
XVII Etapa do curso de Formação de Professores
Indígenas do médio rio Madeira teve duração
de 30 dias (1/06 a 1/07 do ano 2001)e realizou-se na aldeia Tenharim
Kãpinhu?hu, no km 133 da BR 230, mais conhecida como
Transamazônica. Contou com a presença de professores das
etnias Parintintin, Tenharim, Jiahoi e Torá, além de
representantes da OPAN, FUNAI ADR/Porto Velho, SEMED, SEDUC/AM.
A
aldeia Kãpinhu´hu, originalmente chamada Nhu´hu, é
considerada a aldeia central, localidade dos antigos Tenharim. As
casas no Kãpinhu? hu são todas de madeira e teto de
palha; a aldeia possui gerador de energia e poços artesianos.
Há casas de farinha, alguns banheiros[12], uma grande quadra
de futebol e uma casa do posto de saúde, onde diariamente
fala-se pela fonia com o Pólo Base de Humaitá.
A
escola Ariovi (em homenagem ao pai do cacique geral Kwahã
Alexandre Tenharim) ocupa um lugar de destaque na aldeia. É
uma das primeiras casas a ser avistada. Está situada entre a
casa do cacique e o posto de saúde. É um espaço
de chão batido, coberto de palha e sustentado por esteios de
madeira. Sem paredes, fechado apenas por um cercado com uma
portinhola permite que a comunidade participe de fora. Isto é
importante, pois, estreita a relação entre a Escola e a
Comunidade, podendo esta participar, intervir, discutir e avaliar
coletivamente o processo quando necessário, bem como permite
ao professor em formação, consultar, pesquisar, enfim,
envolver também a comunidade no processo de formação
e de constituição de uma Escola própria ?
específica, através de uma relação mútua
e integrada.
Em
todos os cursos são escolhidos temas a serem trabalhados nas
diferentes disciplinas. Naquele ano a equipe da OPAN, em Humaitá,
propôs trabalhar o tema Água, tendo em vista a
preocupação observada nas aldeias com a questão
do saneamento básico. A maioria das aldeias conta com poços
artesianos, cuja água é puxada por gerador, consumindo
combustível; fossas sépticas, as quais, em algumas
aldeias, foram construídas rente aos cursos d'água, o
que ocasionou doenças como a hepatite A.
Foram
destinados cinco dias para discutir o tema. Participaram das aulas
vinte professores ? entre contratados e ouvintes -, sendo que a
maioria, até então, não tivera qualquer contato
com a disciplina, apesar desta já ter sido oferecida em etapas
anteriores.
Durante
este período buscamos, docente e cursistas, trabalhar com os
eixos norteadores da prática pedagógica lançada
no Projeto Indata´hua: participação, valorização
do conhecimento tradicional e o diálogo com outras culturas e
pesquisa. A preocupação inicial foi mostrar a Geografia
como saber voltado a compreensão do espaço, envolvendo
as ações de uso e modificação do lugar e
suas paisagens, a relação afetiva, o imaginário,
a visão de mundo.
Após,
o grupo realizou o primeiro trabalho de observação de
campo, tendo como ponto de partida o principal curso de água
da aldeia, o Igarapé, onde todos tomam banho e lavam roupas.
Saindo da aldeia em direção à nascente do
igarapé, munidos de alguns conceitos básicos sobre a
estrutura de um rio, o grupo pôde fazer suas primeiras
observações do espaço, enquanto paisagem, lugar
e território. Para compreensão do que fora visto no
campo passamos a redução no papel.
Posteriormente
demos início ao entendimento dos pontos de orientação
no espaço (Norte, Sul, Leste e Oeste), utilizando como
parâmetros o nascer e o pôr do sol. Trabalhamos com
exemplos dos próprios cursistas.
Textos
foram escritos, diagnosticando transformações ocorridas
no espaço indígena, pela invasão de turistas
para pescar, por fazendeiros e garimpeiros. Mostram ainda a relação
dos povos indígenas com a água. Os mapas e textos
produzidos pelos cursistas fazem parte do material pedagógico,
por mim editado, para apoio aos mesmos nas escolas das aldeias.
Importante
registrar o compromisso explícito por parte da comunidade em
realizar o evento da formação destes professores, pois
foi ela a responsável pela administração,
preparo e distribuição da alimentação,
além da estadia dos docentes e professores cursistas. Este
envolvimento evoca a afirmação de Meliá (1979)
segundo o qual: "a educação de cada índio é
interesse da comunidade toda. A educação é o
processo pelo qual a cultura atua sobre os membros da sociedade para
criar indivíduos ou pessoas que possam conservar essa
cultura".
Quanto
aos professores, a maioria é bilíngüe. Entre eles
um senhor que, por percalços da vida, viveu muito tempo na
sociedade não índia e não domina a língua
Kagwahiva oral e escrita, mas com uma capacidade de expressão
ímpar. Outros, mais jovens? homens e mulheres, casados ou não,
representantes da comunidade no movimento indígena ou não,
até adolescentes com aptidões diversas, sendo o mais
novo (com doze anos) fluente na leitura da língua portuguesa e
falante da língua materna.
Apesar
da heterogeneidade em habilidades acadêmicas existente entre os
professores cursistas, já que nem todos iniciaram no mesmo
momento, foi emocionante deparar com a preocupação dos
mais habilitados, em ensinar, na língua materna, àqueles
que têm dificuldade na compreensão do conhecimento.
A
despeito das diferenças entre idade, sexo e status social
observa-se algumas características singulares, comuns a todos
estes professores; todos eles são absolutamente desinibidos
para falar, ler, fazer trabalhos e apresentações de
grupo ou individuais. Além disso, na condução
dos exercícios e participação em aulas sempre
tomam como referência a si próprios e a sua história.
Tendo
sido a primeira vez que trabalhei com educação escolar
indígena preocupou-me como desenvolver o tema a ser trabalhado
com os cursistas, levando em conta a cultura de cada povo. A
preocupação era com o novo, com o que vem de fora. Mas
percebi que não há como renegar o novo, pois os
próprios índios sentem a necessidade de adquirir o
conhecimento da sociedade não índia, já que eles
muitas vezes estão inseridos nesta na qualidade de
professores, agentes de saúde, eleitores. Contudo, a cultura
Kagwahiva é sempre chamada a contrapor em todas as questões
que envolvem o conhecimento externo a ela.
Embora
estes tenham sido pontos de extrema importância e positividade
em relação a educação escolar indígena,
convém lembrar que alguns ainda permanecem obscuros e sem
respostas. No caso dos projetos de formação de
professores indígenas, vejo com bons olhos a abertura que os
governos estaduais estão dando à educação
indígena, contudo estes mesmos governos impõem regras
para o desenvolvimento destes cursos que não têm razão
de ser. Por exemplo, nem todos os participantes dos cursos têm
a mesma facilidade para apreender e compreender os conteúdos
das diversas disciplinas em apenas um mês de aulas, como no
caso do Projeto Indata?hua.
No
que se refere à língua, nem todos os cursistas têm
facilidade para falar e entender o português, sendo necessária
a ajuda dos colegas na interpretação. O professor deve
ter presente essa dificuldade. Diante disso como trabalhar com as
diferenças individuais no aprendizado em período tão
curto?
Outro
aspecto relevante é a necessidade dos cursos em atender uma
série de requisitos burocráticos do Estado. Há
uma imposição das próprias instituições
parceiras para adequar a formação indígena às
regras da sociedade não índia, revelando falta de
sensibilidade para a cultura indígena. Assim, trabalhos
desenvolvidos pelos indígenas nos cursos de formação
aos olhos da burocracia não são aceitos para
publicação, porque escritos na língua portuguesa
contendo erros gramaticais e ortográficos.
Referências
bibliográficas
BARROS,
Edir Pina de. Reflexões sobre Educação Escolar
Indígena na Conjuntura Atual. Disponível em:
http://www.seduc.mt.gov.br/educação_indigena_artigos.htm
Acesso em: 14 jun 2002.
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novembro de 1999.
DA
SILVA, Araci Lopes. Educação para a Tolerância e
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FERREIRA, Mariana K.
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Brasil. In: Da Silva, Aracy Lopes e FERREIRA, Mariana K. Leal (org.).
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Humaitá/AM. 1999. 39p. (mimeo.).
SECCHI,
Darci. Escolas Indígenas em Mato Grosso: uma opção
necessária. 2000.
Mariana
Wiecko Volkmer de Castilho