Direito à universidade e respeito à diferença:
em debate a necessidade de formação superior para
professores indígenas
Desde a década de 1980, como é o caso do Movimento dos
Estudantes Indígenas do Amazonas (MEIAM), o tema do acesso ao
ensino superior vem fazendo parte das pautas de discussão e
reivindicação do movimento indígena no Brasil.
No caso das licenciaturas, a partir dos anos 90, como uma das
conseqüências da nova legislação da educação
(LDB nº 9394/96) – que estabelece a necessidade da formação
neste nível de ensino para todos os professores que atuam com
ensino fundamental (5ª a 8ª séries) e ensino médio
– este debate tem se intensificado, assim como diversas propostas
indígenas e indigenistas (tanto oficiais como alternativas).
Processo permeado de inúmeros desafios e contradições/tensões,
a busca pela Universidade, para os povos indígenas, é
visualizada como mais um instrumental de resistência e
construção de novas relações com a
sociedade envolvente, através da perspectiva do diálogo
intercultural. A formação de quadros - sejam eles
lideranças e/ou professores indígenas, dentre outros -
figura no cenário da luta indígena como uma das
questões de destaque frente à concretização
da autonomia e respeito à diferença.
Com relação à formação dos
professores indígenas, a Resolução nº
03/1999 do CNE flexibilizou o prazo dos dez anos colocado pela LDB
para que todos os professores possuam o ensino superior.
Considera-se importante tecer algumas idéias e re-afirmar
princípios que, a nosso ver, necessitam ser levados em conta
quando se pensa na questão do acesso dos povos indígenas
ao ensino superior, em especial, no caso aqui tratado: a formação
de professores indígenas.
Uma primeira questão é que entendemos o processo de
formação como algo maior e mais amplo que a
escolarização/titulação. Como sabemos, os
professores indígenas se formam, primeiramente, em sua própria
cultura, na dinâmica de participação da vida de
sua comunidade; os professores indígenas se formam também
ao participarem dos movimentos indígenas. É necessário
que estes diferentes espaços/momentos de formação
possam se articular.
Quando se fala em acesso ao ensino superior, é bom logo
apontar que existem outros “desdobramentos” tão ou mais
importantes, como a problemática da permanência e da
conseqüente saída exitosa. Ou seja, é preciso
pensar em condições concretas que possibilitem novos
percursos acadêmicos.
Como na maioria das questões que dizem respeito aos povos
indígenas, não há uma só resposta, seja
pela diversidade de povos existentes no Brasil, seja pela diversidade
de histórias de contato, seja pela diversidade de projetos
indígenas de presente e futuro.
Nossa experiência mais recente – com os professores Mura da
região de Autazes/AM, nos leva a tecer algumas idéias
advindas de nossa atuação no projeto “Elaboração
de Curso de licenciatura Específica para professores Mura”,
desenvolvido pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), através
de professores pertencentes ao grupo de pesquisa “Formação
de professores no contexto amazônico”, em parceria com a
Organização de Professores Indígenas Mura
(OPIM), no contexto do Programa de Licenciaturas Indígenas
(PROLIND), do Ministério da Educação (MEC) por
meio das Secretaria de Educação Superior (SESu) e
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade (SECAD).
Os professores Mura concluíram, em 2003, sua formação
no Magistério Indígena, coordenado pela Secretaria
Estadual de Educação (SEDUC/AM), Secretaria Municipal
de Educação (SEMED/Autazes) e OPIM. Atualmente, todas
as escolas Mura de Autazes contam com professores Mura, com formação
específica de nível médio. Estes assumem tanto o
trabalho de sala de aula como a gestão das escolas. O projeto
proposto irá potencializar o processo de formação
continuada já em curso, incluindo e priorizando, neste
momento, o ensino superior. Pretende-se que o Curso de Licenciatura
Específica para Formação de Professores
Indígenas Mura possa contribuir para o avanço dos
projetos político-pedagógicos das escolas Mura já
em funcionamento, assim como garantir o atendimento à segunda
etapa do ensino fundamental e, posteriormente, a implantação
do ensino médio nas aldeias.
Entendemos como necessidade e responsabilidade institucional promover
o estabelecimento de novas relações de ensino, pesquisa
e extensão - onde todos são sujeitos - e a promoção
de momentos e dinâmicas para garantir a efetiva participação
dos envolvidos, tanto no planejamento das ações, como
em seu desenvolvimento, avaliação e elaboração
de resultados. Construir um processo válido, que seja
reconhecido e tenha respeitabilidade tanto da academia quanto do povo
Mura, e que traga resultados positivos para todos os participantes,
figura como meta central de nossa proposta. Espera-se com este
projeto dar condições para que as escolas Mura, através
do trabalho educativo integrado - dos professores e comunidades –
possam promover tanto o acesso aos saberes científicos
historicamente construídos pela humanidade, e assim garantir a
inclusão social, como valorizar o patrimônio
cultural e ambiental Mura, propiciando assim, um verdadeiro diálogo
intercultural, a partir da lógica e valores Mura. Pretende-se
também oferecer condições aos professores Mura
de promover em sala de aula o processo educativo que, fundamentado na
cultura e forma de pensamento Mura, possa estar orientado para a
melhoria das condições de vida, inclusive pela
apropriação crítica de bens culturais e recursos
tecnológicos advindos de outras sociedades.
Por fim, pensamos que as novas e diferentes iniciativas de acesso
indígena ao ensino superior poderão se configurar como
uma contribuição concreta para a construção
de novas relações sociais, numa postura intercultural.
A presença indígena na academia poderá propiciar
o intercâmbio entre diferentes saberes, experiências e
conhecimentos, constituindo-se em importante oportunidade de debate
com outros referenciais e paradigmas. Assim, os dois lados poderão
sair ganhando: os povos índígenas e as Universidades!
(Rosa Helena Silva - Professora da Universidade Federal do Amazonas)