Durante muito tempo, e para muitas pessoas, pensar na inclusão
de indígenas no Ensino Superior parecia uma verdadeira utopia.
Afinal, como imaginar que populações tão
diferentes e alheias à realidade do homem branco pudessem, em
algum momento na história, querer fazer parte deste universo
do conhecimento? Por si só, essa afirmação já
vem recheada de preconceitos, não é mesmo? Mas, segundo
especialistas, ainda é assim que boa parte da população
brasileira - inclusive da comunidade acadêmica - encara o fato
da comunidade indígena estar presente na universidade.
Cada vez mais, porém, a estrutura da sociedade indígena
se integra com a do homem branco. Dessa forma, tal aproximação
faz com que investimentos em educação para esta
comunidade não se tratem de luxo, mas, sim, de uma necessidade
para que estes povos se fortaleçam e sobrevivam. Para entender
melhor esta questão, basta voltarmos nossos olhos para a
história e lembrar que quando um povo se tornava alheio a
outros, trilhava seu caminho rumo à \"extinção\".
Além disso, também podemos tomar como exemplo a tão
famosa globalização. Afinal, por que devemos nos abrir
para discutir e negociar com outros povos? Ora, para crescer e
sobreviver, ao invés de minguar e extinguir.
É claro que, exemplificando desta forma, a questão pode
até parecer simplista demais, mas a verdade é que parte
das dúvidas e do preconceito em relação à
inclusão indígena está intimamente ligada ao
desconhecimento de um povo e, ainda, à forma tardia como o
assunto foi tratado no País. Para se ter uma idéia,
apenas em 2003, o MEC (Ministério da Educação)
passou a lidar com a questão dos índios no Ensino
Superior.
Neste data, foi criado o Prolind (Programa de Apoio à
Implantação e Desenvolvimento de Cursos de Licenciatura
para Formação de Professores Indígenas) que
trabalha três eixos distintos: a formação de
docentes indígenas em instituições que já
mantém tais iniciativas; o apoio para a criação
de novos cursos em outras universidades públicas brasileiras,
além do custeio de estudantes indígenas no Ensino
Superior. Ainda assim, esta iniciativa surgiu a partir de
experiências pioneiras de instituições que se
uniram às tribos indígenas para tentar entender e
suprir suas demandas por educação.
Segundo o coordenador do Núcleo Insikiran de Formação
Superior Indígena da UFRR (Universidade Federal de Roraima),
Fábio Almeida de Carvalho, a instituição - atrás
da Unemat (Universidade Estadual do Mato Grosso) - foi uma das
primeiras a implantar um curso de formação
intercultural de professores indígenas. E mais, num passado
recente em que, por falta de estrutura, era quase impossível
dialogar com o MEC sobre o assunto. \"Quando começamos a
nos movimentar para criar um curso de formação de
professores indígenas, contactamos a Sesu que nos mandou falar
com o departamento de Educação Básica. Quando
ligamos para a Educação Básica, eles nos
disseram que tínhamos que falar com a Sesu\", lembra.
Um dos membros do Secad/MEC (Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério
da Educação) Eduardo Barnes, por sua vez, defende que
embora tal comportamento possa demonstrar uma falta de estrutura do
órgão competente, desde a década de 80, o MEC já
vinha se preocupando com educação indígena. Isso
era feito por meio de parcerias com ONG\'s (Organizações
Não Governamentais) que propunham a formação de
professores indígenas em nível de Magistério.
\"Observando os exemplos destas instituições, que
vinham conversando com a comunidade indígena de forma bastante
efetiva, e percebendo a necessidade da formação
superior para que os professores repassasem, em suas aldeias, a
educação indígena, o MEC passou a investir na
criação de um programa estruturado que atendesse as
demandas das comunidades e das instituições\",
explica.
Atualmente, recebem apoio financeiro do MEC para a implantação,
manutenção de cursos de licenciatura e custeio de
estudantes 12 instituições públicas: UFRR
(Universidade Federal de Roraima), UFMG (Universidade Federal de
Minas Gerais), UFAM (Universidade Federal do Amazonas), UFT
(Universidade Federal do Tocantins), UFCG (Universidade Federal de
Campina Grande), UFBA (Universidade Federal da Bahia), Unemat
(Universidade Estadual do Mato Grosso), UEL (Universidade Estadual de
Londrina), UEA (Universidade Estadual do Amazonas), Uneb
(Universidade Estadual da Bahia), UEMS (Universidade Estadual do Mato
Grosso do Sul), e a Unioeste (Universidade Estadual do Oeste do
Paraná).
Você pode se perguntar: mas porque investir na Educação
Superior? Não seria necessário investir primeiro no
Ensino Fundamental e Médio? Sim. Mas, segundo Barnes, estes
investimentos já estão sendo feitos. \"Hoje, o
estado oferece para os índios escolas diferenciadas de 1ª
a 4ª série, no Brasil todo. Além disso, neste
nível de ensino, 90% dos professores são indígenas\",
destaca. A grande defasagem, reconhecida inclusive pelo MEC, ocorre
nas séries seguintes, da 5ª a 9ª, ou seja, até
o terceiro grau. \"Hoje, temos 67% dos estudantes indígenas
presentes no Ensino de 1ª a 4ª séries. Na seqüência,
há uma queda abrupta neste volume de alunos, apenas 20%. Além
disso, é exígua a oferta de escolas indígenas
para o Ensino Médio Médio. Para se ter uma idéia,
existem apenas 73 unidades. Diante disso, o MEC começou a
pensar que para poder reverter este quadro era preciso investir na
formação de professores indígenas também
em nível superior\", explica.
Vale lembrar que a formação dos professores indígenas
foi uma reivindicação das próprias tribos junto
às instituições, no momento em que eclodia a
discussão sobre cotas para minorias e não se propunha
uma solução que ultrapassasse as barreiras do acesso,
mas sim, da permanência destes excluídos no Ensino
Superior. \"Os índios levantaram a questão da
inclusão e fizeram críticas tanto em relação
ao ProUni (Programa Universidade Para Todos) como ao sistema de
cotas. Isso serviu para aquecer a idéia do projeto de formação
intercultural nas instituições e abrir os olhos do MEC
para a necessidade de inserir estes grupos no terceiro grau\",
diz Barnes.
A pró-reitora de graduação da UFRR (Universidade
Federal de Roraima), Ednalva Dantas, lembra que, até então,
os estados e as universidades foram se organizando aleatoriamente
para resolver a questão dos índios no Ensino Superior.
\"Isso mostra o quanto MEC estava atrasado em relação
à inclusão indígena no terceiro grau. O Paraná,
por exemplo, que é um estado onde é muito forte essa
questão européia, já tinha dado seus passos para
a inclusão indígena\", reforça.
Barnes explica que as reinvidicações dos indígenas
quanto ao ProUni e ao próprio sistema de cotas não só
foram ouvidas e compreendidas pelo MEC, mas também serviram de
base para o desenvolvimento das linhas de ação do
Prolind. \"Além destes fatores, levamos em conta a
reivindicação dos índios de que se fossem
abertas oportunidades no Ensino Superior para eles, que elas se
traduzissem em benefícios para a comunidade indígena,
ou seja, que contribuissem para sua valorização\",
explica.
Daí vieram os investimentos para a criação dos
cursos de formação intercultural de professores
indígenas que, ao concluírem seus estudos, levassem o
conhecimento adquirido nas universidades de volta às suas
aldeias. \"A universidade não tem que ser porta para o
êxodo dos índios de suas aldeias, ao contrário,
deve fortalecer sua vida social e sua cultura para preservar suas
terras. Isso era uma preocupação dos índios e do
próprio MEC que entende que a educação indígena
é completamente diferente do restante e precisa atender
demandas especiais destas comunidades\", explica Barnes.
Hoje, embora o Prolind atue mais fortemente na implantação
e manutenção de cursos de formação
intercultural de professores indígenas, já se discute
com as comunidades a necessidade de abrir vagas em outras áreas,
também fundamentais para seu desenvolvimento, como em cursos
da área da saúde, por exemplo. Recentemente, a UnB
(Universidade de Brasília), em contato com a comunidade
indígena e com órgãos como a FUNAI (Fundação
Nacional do Índio), apostou nesta idéia e, aproveitando
o número de vagas ociosas na universidade, abriu 15 novas
oportunidades em cursos de saúde para estudantes indígenas.
\"É de grande valia que a instituição pense
na questão da reciprocidade e ofereça cursos que possam
auxiliar o fortalecimento das comunidades indígenas\",
considera Barnes.
O dia-a-dia na universidade
Após ultrapassar as barreiras da burocracia e trabalhar no
desenvolvimento de um curso que atenda as necessidades da população
indígena, as instituições sequer começaram
a enfrentar as dificuldades sobre a inclusão indígena
no Ensino Superior. Segundo especialistas, no dia-a-dia dentro da
universidade há dois graves problemas: a falta de recursos e o
preconceito. A falta de recursos atinge tanto às instituições
que atuam junto ao MEC no Prolind - como é o caso da UFRR -
por conta das dificuldades para a liberação das verbas,
mas, também, instituições como a UnB que se
esforçam para manter seus estudantes em classe contando com
apoio de órgãos como a FUNAI.
\"Pode parecer simples, mas não é\", afirma
Ednalva Dantas, pró-reitora de graduação da
Universidade Federal de Roraima. Isto porque, no caso do Prolind, os
cursos para a formação de professores indígenas
são ministrados presencialmente na universidade nos períodos
de férias escolares das tribos, ou seja, janeiro e fevereiro,
julho e agosto. Assim, durante este período, a instituição
deve se preocupar com o transporte, hospedagem e alimentação
destes alunos. \"É uma despesa grande e nem sempre os
recursos são liberados rapidamente\", revela Ednalva.
Barnes reconhece que o custeio dos alunos é uma dificuldade e
que, como já aconteceu antes, podem ocorrer atrasos na
liberação das verbas, embora seja uma preocupação
do MEC que as instituições recebam o apoio para dar
continuidade a seu trabalho. \"No último ano, foram
repassados 3 milhões de reais para as 12 instituições
envolvidas no programa\", diz. Mas ele também concorda que
o maior problema, porém, é a manutenção
destes alunos nos cursos. Divididos em duas etapas, a etapa de
imersão na universidade e a fase em que os alunos voltam para
suas aldeias para fazer seu trabalho de campo, há gastos
bastante distintos, sendo que a etapa intensiva tem um custo mais
alto. \"Nesta fase, os alunos passam os meses de janeiro e
fevereiro, julho e agosto na universidade e os gastos com transporte,
alimentação e hospedagem são maiores. Para se
ter uma idéia, as etapas de imersão costumam ter mais
de 200 alunos durante 40 dias\", diz.
O coordenador do setor de inclusão social da UnB (Universidade
de Brasília), Jaques Jesus, revela que manter os alunos
estudando é a grande dificuldade enfrentada, hoje, na
instituição. Para isso, os indígenas contam com
o apoio da FUNAI na concessão de bolsas de estudos no valor de
aproximadamente R$ 900,00 mensais. \"Há gastos, mas também
um esforço imenso para evitar a evasão e permitir que
estes alunos, da maneira que nos foi pedido pela comunidade indígena,
tenham oportunidade de estudar e devolver o que aprenderam para sua
comunidade\", diz.
Superada a falta de recursos, as instituições de Ensino
Superior têm que vencer outra batalha: o preconceito na
comunidade acadêmica. Segundo o coordenador do Núcleo
Insikiran de Formação Superior Indígena da UFRR
(Universidade Federal de Roraima), Fábio Almeida de Carvalho,
além dos alunos apresentarem restrições quanto à
presença indígena na universidade, há
professores que se mostram contrários a esta iniciativa. Ele
explica que um dos fatores para tal resistência quanto à
presença indígena na universidade se deve ao fato de
que, em Roraima, a disputa de terras e a questão da reforma
agrária ainda é um tema muito mal resolvido (saiba mais
no box ao lado).
Já na UnB, segundo Jesus, não há um preconceito
declarado contra os indígenas, por isso, as dificuldades estão
muito mais ligadas à adaptação do aluno indígena
ao Ensino Superior e ao ambiente, além do contato de outros
alunos e professores com tais estudantes, do que à resistência
em ambos dividirem o mesmo espaço. \"Problemas para
entender a linguagem, discrepâncias culturais e, até
mesmo, dificuldades com o suporte acadêmico dado pelos
professores a estes alunos, são realidades na UnB. Por outro
lado, são fatores que, aos poucos, vêm sendo superados
facilmente graças ao apoio de outros estudantes e do interesse
dos envolvidos para que a iniciativa dê certo\", reforça.
Atualmente a instituição conta com 20 projetos
indígenas. \"Por isso, há uma preocupação
em dar suporte a estes estudantes dicutindo, freqüentemente,
formas de apoio acadêmico, seja por meio de monitoria ou grupos
de estudo na área de saúde para que eles consigam se
adaptar com maior facilidade\", diz.
Como se vê, pensar na inclusão indígena exige
esforços não só do Ministério da
Educação, mas das universidades, da iniciativa privada
e das fundações que pretendam abrir cada vez mais
espaço para as populações excluídas. Este
ano eleitoral, porém, deixa as universidades, em especial
aquelas que recebem recursos do Prolind, receosas quanto ao futuro do
projeto de inclusão indígena. É presente o medo
do retrocesso com a entrada de um novo governo, uma vez que o Prolind
ainda é um programa e não uma lei. Entretanto, Barnes
afirma que apesar de não se tratar de uma lei, o Secad
pretende garantir, por meio de medidas a serem realizadas ainda este
ano, que o Prolind continue a ser desenvolvido pelo Ministério
da Educação mesmo nos outros governos que se seguirem.
\"Acho muito difícil um novo governo entrar e desprezar
uma política no Ensino Superior como o Prolind. Contudo,
estamos trabalhando para que ele se estabeleça e possa
continuar levando à frente a causa indígena na
educação\", conclui.
(Universia)