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Fernanda Kaingang

SALVATORE CARROZZO
Repórter da UnB Agência

Inúmeras vezes já perguntaram a Fernanda aingang se ela realmente é índia. Afinal, ela está bem distante do estereótipo do nativo brasileiro. Não usa cocar de penas ou anda descalça. Mais ainda: as bochechas exibem um leve rubor. Isso é prova que, para a maior parte dos que moram no país, índio é tudo igual. “Nasci no Rio Grande do Sul e é impossível imaginar que o meu povo seria igual a um no Amazonas”, diz Fernanda, lembrando que o Brasil tem cerca de 230 povos indígenas. Kaingang, na verdade, não é sobrenome e sim o nome do povo do qual ela descende. Hoje, existem 50 mil Kaingangs, espalhados pelo Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo.

Fernanda é a primeira mestre indígena em Direito do Brasil e o diploma leva o selo da Universidade de Brasília (UnB). A dissertação de mestrado teve como título A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) no Brasil, na qual analisa as falhas nas discussões da CDB nos fóruns internacionais. 

Mas, como ela mesma diz, não há como duvidar que sua identidade é realmente ligada àquela cultura. A jovem de 28 anos nasceu e viveu em diversas aldeias do sul. Saiu apenas aos 17 anos para estudar Direito na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Mas, apesar de estar feliz com a profissão, esse não foi o caminho escolhido por ela. Confira os principais trechos da entrevista dada para UnB Agência:

UnB AGÊNCIA – Então, você não queria fazer Direito?
FERNANDA KAINGANG – Não, queria fazer jornalismo (risos). Meus pais disseram que a aldeia precisava de pessoas que entendessem a cultura Kaingang e que pudessem traduzir as leis brasileiras para nosso povo. Então, fui literalmente mandada pelo meu povo pra estudar Direito. Meus avós ficaram chocados quando eu disse que ia à universidade, perguntaram se eu achava que um Kaingang não poderia oferecer tudo o que eu preciso. Os povos indígenas são afetados por uma sociedade que se impôs, que tomou nossas terras. É necessário então que jovens saiam, estudem e façam cumprir as leis. Fui a primeira advogada indígena do sul do Brasil. Depois fui mandada para Brasília para acompanhar os processos jurídicos e políticas públicas para povos indígenas. Vim trabalhar como assessora jurídica da presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Cláudio Reis/UnB Agência

UnB AGÊNCIA – Qual o maior problema enfrentado pelos indígenas?
FERNANDA – Terra, sem dúvida. Se o povo tem terra, tem condições de batalhar por seus direitos. Mas se um povo não tem, não tem condição nem de ser povo, física e culturalmente. Ninguém quer retomar todas as áreas do Brasil, o que se quer é garantir uma condição mínima. Os problemas que existem hoje nas aldeias, como desnutrição, drogas, prostituição, tem a ver com a falta de preservação de uma cultura. A terra precisa ser garantida, homologada. Essa é a maior bandeira dos povos indígenas hoje. O brasileiro desconhece a historia indígena. As pessoas falam “o índio”. Mas o Kaingang, meu povo, é muito diferente do Guarani - hábitos, alimentação, formas de se portar, tudo. O Brasil tem 230 povos e desconhece essa diversidade. Em muitos casos, o estado de miséria identificado é lamentável.

UnB AGÊNCIA – Essa situação está piorando? Não há melhoras?
FERNANDA – Essa situação se agrava cada vez mais. Morrem muitas crianças de desnutrição, adolescentes se suicidam. Isso não são fatos isolados. O governo e a sociedade são omissos. Se isso não ocorre, as perspectivas não são melhores. Para um indígena chegar aos níveis mais altos de educação, é uma dificuldade. O português não é a língua-mãe, vem de um sistema de ensino suficiente. Se a educação pública brasileira já não é boa, em terras indígenas, é ainda pior. Pelo IBGE, em 1950, 50% dos brasileiros eram analfabetos, o mesmo índice entre os indígenas em 1994. Esse jovem é desmotivado, tem uma deficiência educacional imensa e se depara com um contexto cultural no qual não se reconhece. Isso se reverte em um baixíssimo número de acadêmicos indígenas.

UnB AGÊNCIA – Caso esse número fosse maior, o que mudaria?
FERNANDA – Nossas comunidades nos formam para nos preocuparmos com o coletivo. Quando tem uma graduação, certamente esse profissional não vai levar uma “vida de branco”, esquecer o que o povo indígena passa. Há esse compromisso. Poderia estar na minha aldeia agora. Meu bebê não estaria doente agora (o filho dela, de dois anos, estava com suspeita de rotavirose quando a entrevista foi feita). Mas preciso estar em Brasília, acompanhando as políticas públicas e recebendo denúncias das aldeias. Durante muito tempo disseram o que seria bom para nós. É hora dos próprios povos buscarem uma autodeterminação. Dizer “nossa alimentação é assim”, portanto essa cesta básica não vai resolver. É preciso ter apoio para o indígena que sai da aldeia para se formar.

Cláudio Reis/UnB Agência

UnB AGÊNCIAComo estão as instituições face a essa situação que você apresenta?
FERNANDA – Existe a Funai, que não tem avançado em sua função de demarcação de terras, e isso é uma questão antiga, não é coisa do governo Lula. A Fundação Nacional de Saúde (Funasa) afunda por não conhecer a realidade na qual está, enquanto existem profissionais indígenas formados. Minha irmã é enfermeira e colocaram ela para trabalhar com os Carajás. Por quê? Enquanto isso, a saúde dos Kaingang precisa de gente como ela. Ninguém ouve os povos indígenas ou não acatam aquilo que é ouvido. Há uma série de conselhos no Governo que pensam políticas publicas que são apenas formalmente participativos. Temos o direito a espernear, mas isso não quer dizer que somos realmente ouvido. É frustrante.

UnB AGÊNCIA – Como é a formação daqueles que fazem políticas publicas no Brasil?
FERNANDA – Muito ruim. Ouço muita barbaridade. A maior parte das pessoas que faz políticas para povos indígenas nunca pisou em uma aldeia. Isso é muito errado. São realidades diferentes! Isso leva ao fracasso inevitável das políticas. Por que dar gado para os Guaranis criarem se eles não comem carne de gado e as crianças não tomam leite que não seja o materno? Às vezes, essas incongruências são pura falta de vontade.

UnB AGÊNCIA – Mas você não considera positivas mudanças como a reserva de vagas em universidades?
FERNANDA – Essas iniciativas são importantes. Por piores que sejam, é uma tentativa de reparação. Mas não adianta colocar um estudante na universidade e ele não ter dinheiro nem para chegar à faculdade. O rendimento escolar acaba sendo insuficiente. Esse processo da UnB é uma vitrine, vai servir de exemplo para muitas universidades.

UnB AGÊNCIAOs “brancos” não reconhecem os índios. Mas os índios se reconhecem como tal?
FERNANDA – Houve uma época que os jovens não queriam falar Kaingang, era vergonhoso. E a geração de meus pais lutou muito para mudar isso por meio da educação. Hoje, essa vergonha não existe mais. Com a Constituição, houve uma mobilização, a formação de um lobby para pressionar congressistas, e isso teve um reflexo nas aldeias. A Constituição é muito boa, mas não é implementada. Pode avançar, é claro. Principalmente em relação à autodeterminação, a participação de povos indígenas em processos decisórios. Não existem consultas aos povos. Cada um tem sua forma de resolver seus conflitos. Se há uma generalização e se aplica uma mesma solução para todos. Isso pode ser um problema. A diversidade cultural é ignorada. Quando se fala em índios, se esquece que são 230 povos!

Cláudio Reis/UnB Agência

UnB AGÊNCIA – Estamos em processos de sucessão política. Tem acompanhado as propostas para a população indígena?
FERNANDA – Ninguém fala disso. Não há propostas. Não se sabe que nós existimos. Somos 1% da população do Brasil. Não é um segmento interessante aos candidatos. E há interesses poderosos por trás disso. E a parte que cabe aos índios representa a fatia mais rica em termo de biodiversidade, com muitas jazidas minerais, madeira e água. Há uma pressão econômica muito grande. Assim, nenhum candidato defende a diversidade.

UnB AGÊNCIA – A CDB surgiu em 1992.O que aconteceu de lá para cá?
FERNANDA – Muitas reuniões caríssimas. O Brasil foi o primeiro a assinar. Hoje,  são 188 paises participantes. Foram feitas oito conferências e delas surgiram recomendações. Mas não há implementações nem sanções. Não há interesse por paises hegemônicos. A indústria da biopirataria movimenta bilhões de dólares. O que se vê é que delegações com menos peso acabam sendo vencidas pelo cansaço. O Brasil é muito ouvido, mas os índios não têm direito a voto no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), que é o braço da CDB no Brasil e é formado por representantes indicados pelos Ministérios. Acompanhar o que acontece na ONU é muito complicado, o português sequer é língua oficial lá, quem dirá uma língua nativa. O pior é que a CDB não quer dar voz às minorias.

UnB AGÊNCIAPor que deixou de trabalhar diretamente para o Governo?
FERNANDA – Em parte, por desencanto. Comecei a ouvir muitos queixas, desde grifes que usam camisetas com desenhos sem autorização até exploração de terras. Passei então a dar cursos de legislação nas aldeias. Em agosto, estava no Mato Grosso. Em outubro, devo ir ao Acre. Alguns projetos ainda são feitos em parceria com a Funai, mas a autonomia aumentou. Há mais avanços por parte das organizações não-governamentais (Ongs) que o governo. Sai da coordenação-geral de defesa dos direitos indígenas em 2003 para criar uma organização que se preocupasse com o patrimônio cultural indígena. Fundei o Instituto Indígenas Brasileiro para Propriedade Intelectual (Inbrapi), que é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip). Lá temos um núcleo de cinco advogados indígenas. Podem ser poucos, mas deve-se levar em consideração que existem apenas 20 em todo o país. Existem espaços a serem buscados.