Título
de doutor é concedido pela primeira vez a indígena
Quarta-feira,
19 de abril, é o dia de uma índia. É também
a data em que se celebra o Dia do Índio, mas não é
por isso que Maria das Dores de Oliveira Pankararu, 42, foi o
centro das atenções na Universidade Federal de Alagoas.
Ela defendeu sua tese de doutorado em lingüística.
Pode parecer pouco, mas não é. A Funai (Fundação
Nacional do Índio) não tem registro de outro índio
que tenha chegado ao mais alto grau acadêmico do país.
Ela conta
que não vê a hora de visitar de novo sua aldeia, desta
vez com um título de doutora, para comemorar com os pankararu
da mesma maneira que fez quando concluiu seu mestrado. Eles, que
vivem no município de Tacaratu (no sertão
pernambucano), porém, não serão os únicos
a terem motivos para comemoração.
Durante
seu doutorado, Maria pesquisou a língua indígena ofayé.
Ela hoje é falada por 11 pessoas da comunidade ofayé,
de Brasilândia (MS), e está em risco de extinção.
Seu trabalho, em parceria com a professora ofayé Marilda de
Souza, foi fazer uma cartilha para ensinar as crianças da
comunidade o idioma e criar uma correlação entre a
língua oral e a escrita para facilitar o aprendizado.
Chegar ao
topo da carreira acadêmica não foi simples, mas ela
encarou como mais um passo. Os primeiros, e mais difíceis,
foram dados ainda criança, quando andava a pé por uma
hora e meia por morros e trilhas até chegar à escola
mais próxima de sua aldeia, no município de Tacaratu.
Ainda
criança, ela se mudou para São Paulo quando a família
fugia da seca e buscava emprego. Fez até a sétima série
e voltou com seus pais para sua aldeia.
Apesar de
ter vivido na maior cidade brasileira, Maria conta que ela só
"descortinou o mundo" quando voltou a estudar na pequena
cidade de Tacaratu. "É uma cidade pequena, mas chegar lá
de novo para mim foi como descortinar o mundo. Minha família
sempre me protegeu muito, mas eu tive que estudar sozinha. Tive que
ter coragem para continuar na escola porque muitos tinham aquela
visão de que os índios são bêbados,
vagabundos."
Após
se formar no ensino fundamental e no médio, Maria passou no
vestibular do curso de história de uma pequena faculdade
próxima de Tacaratu. Depois, fez outro curso de graduação,
pedagogia. Dessa vez, porém, foi mais longe e passou no
vestibular da Universidade Federal de Alagoas.
"Sofri
muito quando vim morar em Maceió. Perguntava o que eu estava
fazendo aqui. Mas disse para mim mesma que tinha que parar de ser
vítima da história", diz.
Em sua
trajetória acadêmica na universidade, Maria trombou
muitas vezes com o mesmo preconceito que enfrentou em Tacaratu. "No
mestrado, um professor chegou a repetir em aula, sem saber que eu era
índia, os mesmos estereótipos sobre os indígenas.
Eu protestei, mas ninguém quis se posicionar na briga."
Apoio
Mas em
seu caminho na universidade ela também encontrou apoio, como o
de suas orientadoras Januacele de Costa e Adair Palácio. A
oferta de bolsas também foi fundamental. No mestrado, veio da
Fundação de Amparo à Pesquisa de Alagoas. No
doutorado, a ajuda foi da Fundação Ford.
O
programa de bolsas da Fundação Ford, feito em parceria
com a Fundação Carlos Chagas, é de ação
afirmativa, mas não trabalha com cotas. Ele prioriza os
segmentos da população menos presentes na
pós-graduação: negros ou indígenas que
venham de famílias que tiveram poucas oportunidades econômicas
e educacionais e nascidos no Norte, no Centro-Oeste ou no Nordeste.
Além
de fazer todo ano anúncios das inscrições -as
deste ano estão abertas até 22 de maio e mais
informações podem ser obtidas no site
www.programabolsa.org.br-, há também um programa
pró-ativo na busca de candidatos que se encaixem no perfil.
Após serem selecionados, eles ganham uma bolsa para se manter
durante o curso e para compra de recursos didáticos.
"Eu
fiquei sabendo que haveria uma seleção de bolsas a
partir de critérios de ação afirmativa pela
Fundação Ford. Vi que me encaixava em todos os
requisitos e tentei. A bolsa foi fundamental para que eu pudesse
viajar com freqüência para a aldeia ofayé e fizesse
minha pesquisa", conta Maria.
O
resultado das viagens de Maria e de sua pesquisa de doutorado pode
significar para os ofayé o resgate de uma língua.
Tentativas anteriores de ensiná-la para a geração
mais jovem tiveram pouco êxito. Dessa vez, no entanto, o
projeto partiu de uma índia para índios. Fez toda a
diferença.
(Antônio
Gois, Folha de SP, 17/4)